O pronunciamento do presidente Donald Trump ontem pela manhã serviu para acalmar um pouco a tensão no Oriente Médio. Mesmo assim, persiste a incerteza sobre as consequências do ataque que matou o general iraniano Qassem Soleimani há uma semana. O que acontecer daqui para frente dependerá da que cada lado fará.

Para os americanos, como ficou claro no discurso de Trump, o envio de tropas e uma guerra aberta são o último recurso. Haverá ampliação nas sanções econômicas (embora não se saiba ainda como). Também deverá ser mantida a “guerra de joystick” com ataques pontuais a alvos como Soleimani ou outros líderes ligados ao Irã.

Para o Irã, depreende-se das palavras do aiatolá Ali Khamenei, o revide continuará (embora também não se saiba como). O ataque às bases americanas em território iraquiano foi só um “tapa na cara”. Os objetivos iranianos são: 1) expulsar os americanos da região; 2) manter seu programa nuclear, possivelmente até obter uma bomba atômica.

Não há contradição absoluta entre a metas de cada lado. Embora Trump tenha afirmado que não deixará o Irã chegar à bomba, não é inverossímil a saída completa das tropas americanas. Ele já tentou repetidas vezes fazer isso na Síria e no Afeganistão. A saída do Iraque chegou a ser aventada depois da resolução do Parlamento iraquiano que ordenou a retirada, embora depois tenha sido desmentida.

Num cenário em que o Irã oferecesse garantias suficientes de que não obteria a bomba, não seria impossível que os Estados Unidos aceitassem sair. A primeira dificuldade aí é que tais garantias existiam no acordo nuclear rompido por Trump em 2018. Vinham sendo cumpridas pelos iranianos até maio do ano passado, segundo as inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea).

Ao repudiar o acordo e atribuir a responsabilidade pelo acirramento das tensões ao alívio das sanções econômicas que resultou dele, Trump desafia os fatos. Os ataques aos drones americanos, a instalações petrolíferas na Arábia Saudita e a navios no Golfo só ocorreram depois que os Estados Unidos abandonaram o tratado nuclear.

A segunda dificuldade está no histórico iraniano de mentira e duplicidade. Antes de 2013, o Irã mentiu repetidas vezes sobre a natureza de seu programa nuclear. Soleimani aproveitou o esfacelamento da Síria e do Iraque e a instabilidade do Iêmen para estender a rede de milícias e grupos paramilitares que o Irã financia e apoia. Por meio dela, promove ataques e atentados terroristas.

Como não dispõe de força militar para enfrentar os americanos de modo explícito, a estratégia implementada por Soleimani permite ao regime dos aiatolás manter a postura ambígua e, quando conveniente, atribuir ações violentas à iniciativa autônoma de grupos como o Hizbollah iraniano, os Houthis iemenitas ou a alguma das milícias reunidas Forças de Mobilização Popular (FMP) iraquianas.

De seu lado, os americanos abandonaram no governo Trump o tipo de intervenção capaz de garantir a estabilidade e o desenvolvimento da sociedade civil no Iraque e na Síria. Mais caras, mais lentas e mais trabalhosas, poderiam reduzir o poderio de tais grupos. Em vez disso, Trump prefere ataques “cinéticos” rápidos, de efeito localizado, que podem até eliminar um ou outro responsável pelo terrorismo, mas não eliminam as condições em que ele continua a vicejar.

É uma estratégia consistente com a doutrina Trump, o isolacionismo mais preocupado em evitar operações militares de alta envergadura do que em exportar liberdade, democracia e “valores americanos” ao Oriente Médio (como preconizavam Barack Obama e George W. Bush).

Outro fator tem se mostrado decisivo para a implementação dessa doutrina: a economia americana não depende mais do petróleo do Golfo. Trump parece, em virtude disso, perfeitamente satisfeito em deixar o custo de manutenção da segurança na região nas mãos dos europeus, dos chineses ou mesmo dos russos que já estão por lá.

Estaria Trump disposto a aceitar uma bomba iraniana num futuro não tão distante se isso garantisse a volta para casa dos soldados americanos? Estariam os aiatolás dispostos a abrir mão da bomba em troca da presença hegemônica no “arco xiita” se estendendo por Iraque, Síria e Líbano e de uma convivência tácita com Israel? Não parecem cenários tão antagônicos, embora, no curto prazo, a conciliação ainda seja inverossímil.

Fonte:G1